quarta-feira, março 09, 2005

Achei que Meu Pai Fosse Deus: e Outras Histórias da Vida Americana
PAUL AUSTER
Esta é minha história, a história que conto para as pessoas quando as conheço bem. Estou com 23 anos agora; quando estas coisas aconteceram, eu tinha dezenove, quase vinte.
No final de meu segundo ano na faculdade, consegui um emprego de férias no serviço florestal da Califórnia. Não queria dirigir sozinha desde a Geórgia, então convenci Anna, minha melhor amiga há dez anos, a viajar comigo e depois voltar de avião. Nenhuma das duas já atravessara o país. Meu pai encheu o carro com quilos de equipamento de emergência para a estrada: um machado, um conjunto de ferramentas “faça-você-mesmo”, luzes de emergência que durariam até 36 horas, um macaco sofisticado, um galão de água, um cabide torto (caso o amortecedor caísse), um pequeno kit de primeiros socorros e um telefone celular que podia ser ligado no acendedor de cigarros. Ele passou várias noites acordado, pensando nas maneiras de nos proteger de tudo que pudesse acontecer na viagem.
Partimos no começo de junho, dirigindo depressa para sair do Sudeste. Começamos a relaxar quando chegamos às pradarias que margeiam as montanhas do Oeste e nos deleitamos atravessando os desertos do Sudoeste. Lembro de dirigir entre as formações douradas de arenito no calor e Anna pondo as palmas das mãos no pára-brisa e exclamando que parecia que segurava o brilho do sol nas mãos. Naquela noite, paramos numa minúscula cidade de Utah chamada Blanding. No hotel, examinamos nossa rota no mapa e decidimos que acordaríamos cedo, seguiríamos para o sul, na direção do Arizona, e que chegaríamos a Las Vegas na noite seguinte.
Partimos logo após o amanhecer, tomando a direção sul na Highway 81. Era uma estrada de pista simples e, assim que deixamos Blanding, não se via mais do que arbustos e colinas vermelhas distantes. Eu dirigia e Anna pilotava a câmera de vídeo. Pouco antes de desligarmos a câmera, observei como seria horrível sofrer um acidente de carro naquele lugar - o isolamento era palpável, a paisagem sem árvores parecia implacável. Eu ansiava por ver árvores novamente.
De repente, surgiu a figura de um homem diante de nós, no lado direito da estrada. Parecia ter emergido do acostamento baixo e sacudia os braços para nós.
“Meu Deus”, falei, pensando nas histórias que minha mãe via na televisão sobre mulheres atacadas nas estradas, “o que é isto?”
“Rachel”, disse Anna, com a mão na janela, “você está vendo o rosto dele? Está vendo aquele carro?”
Virei-me e olhei. Era a última coisa que eu gostaria de ver.
O rosto do homem estava um tanto coberto de sangue. Cerca de dez metros atrás dele havia um caminhão capotado e destruído na areia. Vi corpos espalhados pelos arbustos, alguns a mais de quinze metros da estrada.
Anna abaixou o vidro. O homem disse que houvera um acidente terrível e que precisavam de ajuda. Estacionei o carro e decidi correr o risco, enquanto Anna chamava a polícia pelo telefone celular. Eu notara uma placa pouco antes: estávamos a oito quilômetros da fronteira do Arizona. Anna perguntou ao homem quantas pessoas estavam lá. Escutei-a dizer ao minúsculo telefone: “Acho que são umas quinze pessoas”. Não havia mais ninguém por perto e nada à vista por quilômetros. Não havíamos visto nenhum outro carro desde que partíramos de Blanding. Depois que Anna desligou o telefone, éramos apenas nós e eles. O homem disse que se chamava Juan.
Os primeiros veículos de emergência chegariam quarenta minutos depois. No decorrer da manhã, viriam um a um, sempre ficando sem esparadrapo e maca e espaço para os corpos. Umas poucas pessoas parariam para ajudar. O acidente envolvia apenas um veículo, um caminhão coberto que transportava dezessete imigrantes mexicanos que haviam viajado toda a noite. Três deles morreram naquele dia e catorze sofreram ferimentos internos, lacerações e ossos quebrados.
Saí do carro e desci pelo acostamento, trêmula e levando a pouca água que tínhamos. Quando cheguei no terreno plano, uma garota da minha idade veio correndo na minha direção. Era a única mulher do grupo e saíra do lado de um rapaz que estava estendido de costas no chão. Havia sangue em seu rosto e sua boca e loucura em seus olhos. Falava em espanhol e pegou a água de mim. Seus longos cabelos negros flutuavam atrás dela. Segui-a até o rapaz e me ajoelhei ao seu lado, enquanto ela jogava água no rosto dele, sem parar de gritar algo em espanhol. Olhei em volta por um instante. Outros homens jaziam silenciosamente na areia, de barriga para baixo. A respiração do rapaz era entrecortada e difícil e algo me disse que estava todo quebrado por dentro. Corri até meu carro para pegar nossos suprimentos.
Quando peguei nosso kit de primeiros socorros, que era do tamanho de duas batatas assadas, comecei a rir. Abri o pacote e olhei para os pequenos pacotes de gaze e band-aid e fui tomada por um súbito sentimento de ódio por mim mesma. Imaginei-me escondendo-me sob o carro para esperar a chegada das ambulâncias. Esse momento pareceu durar, mas não poderia. Outro sentimento acorreu de outro lugar e tirou-me de mim mesma: tinha certeza de que voltaria lá e nada que visse poderia me fazer dar as costas.
Nas quatro horas seguintes, Anna e eu corremos de um corpo para o outro, usando Juan como intérprete, dizendo para ficarem imóveis ou perguntando se sentiam frio. Pegamos todas as toalhas e cobertores que eu trazia e os enfiamos sob os homens, que começavam a tremer de choque. Vimos muitas coisas medonhas. Enfiei a cara na areia para fazer contato visual e passei minhas mãos suavemente sobre costas e cabeças, dizendo em inglês o que eu esperava que fossem sons calmantes, sabendo instintivamente que, quando a gente se sente sozinho, é mais fácil decidir morrer.
Quando as ambulâncias chegaram, ajudamos os paramédicos a pôr os homens nas macas e ficamos com os homens que tinham de esperar no acostamento pela próxima viagem. Para um deles, era quase impossível respirar, seus olhos eram como bolas de vidro e sua boca estava coberta de sangue. Pus meu rosto logo acima do dele e friccionei suavemente seu peito, encorajando-o a continuar respirando.
O rapaz que estava quebrado morreu enquanto eu observava sua esposa de dezenove anos gritar e abrir seus lábios e gengivas, como se procurasse vida em sua boca. Fiquei sentada quieta por um momento, atordoada e paralisada. Quando compreendi que ele estava morto, corri para outro corpo silencioso com o rosto enfiado na areia.
Quando me abaixei para falar com um homem deitado no chão e cujo braço estava partido em dois, olhei adiante e vi o rosto vincado pelas rugas de um velho com longos cabelos grisalhos, a cabeça repousada na areia, os olhos vidrados em mim. Arrastei-me até ele e fechei seus olhos, peguei um lençol para cobri-lo, tentando fazer algo por ele para que não ficasse ali, morto e abandonado.
Um menino que fora jogado mais longe que os outros estava sendo amarrado numa maca pelos paramédicos. Falei com ele, dei-lhe um sorriso aberto e lhe garanti que ficaria bom! Seus olhos e sua boca estavam cheios de sangue, mas pareceu-me que me via e que sorriu de volta. Morreu depois no helicóptero que o levava para Grand Junction.
Quando todos os outros haviam sido levados, Anna e eu já estávamos apaixonadas por nosso intérprete, Juan. Tinha 27 anos, falava inglês perfeito e tinha a cabeça coberta por cabelos grossos e encaracolados. Enquanto uma paramédica navajo cuidava dele, com Anna e eu ao lado, disse que estava com vergonha por não cortar os cabelos há tanto tempo. Anna pegou a bagagem dele no caminhão capotado: um saco de supermercado com meias dentro. Juan tinha quatro ferimentos na cabeça e os cabelos grossos haviam ajudado a controlar o sangramento. Estava entrando em delírio quando finalmente o colocaram na ambulância. Quando percebeu que íamos nos separar, entrou em pânico e ergueu-se da maca na minha direção.
“Para onde vocês vão?”, perguntou, e tive de dizer que estávamos voltando para a estrada. Disse isso porque não sabia o que mais poderia fazer. Não podia segui-lo para o mundo do hospital. Já tivera minha dose. Estava pronta para voltar ao mundo da segurança, de sangue e ossos devidamente contidos dentro dos corpos, às árvores, ao conforto e à misericórdia.
“Não posso pagar vocês, mas Deus vai recompensá-las”, disse Juan.
O cheiro do homem ficou comigo, apesar de me lavar várias vezes. Podia senti-lo emanando de meus pulsos enquanto dirigia, o cheiro amargo de suor velho e pobreza. À noite, tivemos cãibras nos músculos das pernas, devido às horas de correria trêmula para cima e para baixo, e a areia que se misturou com meu suor ainda está grudada nas sandálias que eu usava naquele dia.
Chegamos a Las Vegas naquela noite, exaustas e abaladas. Chorei no telefone ao falar com meu pai, repetindo sem parar: “Foi horrível”. Foi a única vez que chorei por causa do acidente. Um ano depois, acordei suando frio no meio da noite com uma voz martelando dentro da minha cabeça a frase: “Você viu um homem morrer”.
O que fazer com isso? O que fazer com os eventos daquela manhã, engolidos pelo tempo enquanto nos afastávamos, coisas das quais não saberíamos mais nada: nenhuma menção no noticiário noturno, nenhuma notícia em nenhum jornal que tenhamos lido? Poderia muito bem ser um sonho que ambas tivemos.
O que você faz com uma história como esta? Não tem lição, não tem moral, quase não tem um fim. Você quer contá-la, ouvir ser contada, mas não sabe por quê.
Raquel Watson
Washington, D.C.

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