domingo, agosto 28, 2005

Assim falou Martha Medeiros:
Seja através de clichês cinematográficos ou de prosa da mais alta qualidade, a verdade universal é que só o amor nos humaniza de fato. Pode-se gostar ou não desta idéia, ela pode ser claustrofóbica para uns e libertária para outros, mas o mundo dá voltas e voltas e chega sempre neste ponto, o de que o amor é mais importante que o dinheiro, que o sexo, que a beleza, ainda que tudo isso seja ótimo também. Mesmo com uma vida recheada de acontecimentos, se estivermos ocos, não veremos muita graça em nada. Poderemos até parecer independentes, inteligentes, modernos, sofisticados... mas só o amor responde às nossas indagações — indagações que podem também ser divertidas, inspiradoras... mas ainda irrespondíveis sem amor. Sem amor, neca. Sem amor, babaus. Sem amor, o resto é consolo.
Vale amor por um cachorro, por um projeto, por si mesmo? Prefiro acreditar que sim, que o amor sem conotação romântica também pode justificar uma existência, que ele pode tornar uma pessoa, senão plena, ao menos leve e alegre, sem necessidade de buscas intermináveis. Mas não é isso que nos dizem livros, filmes, músicas, poemas. Se não amamos alguém, é uma vida vivida sem integralidade. Pode até ser uma vida boa, mas não uma vida que valha a pena ser contada.
Diante desta sentença, fazer o quê: é ele que desejamos, é por ele que procuramos, é nele que queremos tropeçar, nem que seja aos 90 anos, nem que seja quando estivermos secos depois de fazer tanta burrada, nem que seja para durar três dias, nem que seja para nos fazer sofrer, nem que nos arrebentemos, como tantos se arrebentam em seu nome. Diz o personagem de García Márquez, torturado pelo amor: “Não trocaria por nada neste mundo as delícias do meu desassossego”. Quem mais nos colocaria assim de joelhos? Sem amor, nos resta a paz. Porém uma paz sem gosto.

sábado, agosto 27, 2005

The United States of Leland (2003)
Director: Matthew Ryan Hoge
Cast: Ryan Gosling, Kevin Spacey, Don Cheadle, Chris Klein, Jena Malone, Lena Olin, Michelle Williams, Martin Donovan.
Leland: This one is something a friend of mine said to me. "You have to believe that life is more than the sum of its parts, kiddo." I remember it right now to the "kiddo" part. But when I think about what she said, the same thing always comes into my head. What if you can't put the pieces together in the first place?
I think there are two ways you can see the world. You either see the sadness that's behind everything or you choose to keep it all out.
Maybe it makes sense now. Maybe somewhere in all of this there's a reason. Maybe somewhere in all of this there's a why. Maybe somewhere there's that thing that lets you tie it all up with a neat bow and bury it in the backyard. But nothing, not getting angry, not prayers, and not tears, nothing can make something that happened unhappen.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Querido amigo
Faz algum tempo que não recebo notícias suas, por isso e também por uma grande necessidade de desabafar, te escrevo hoje.Venho sentindo uma enorme angústia no peito, às vezes parece que vou sufocar ou cair no choro. Às vezes, tenho vontade de chutar tudo que está ao meu alcance. Estarei perdendo a razão? Ainda não, pois consigo cumprimentar as pessoas nas ruas e seguir a rotina, mecânicamente. Mas por dentro, alguma coisa morreu ou está adormecida, não sei bem. Me impressiona como qualquer coisa me irrita nesses dias. Tudo é demais. O sol forte, a buzina dos carros,o som vindo da tv... a comida não desce bem. Sabe quando você chega numa encruzilhada e não consegue decidir que rumo tomar? Assim tem sido minha vida e parece que me coloquei numa situação da qual não consigo sair.Estou cansada de brigas, acho que conseguiria viver sem amor mas não sob eterno conflito.
Foi bom entrar no carro e pegar a estrada, somente eu e Bia. Deu uma certa sensação de liberdade que não durou. Logo estávamos no Rio e de novo aquela sensação estranha de que algo está errado. O comportamento de Bia por vezes também me espanta.Tudo isso deve está refletindo nela.Sim, com toda certeza. I surely need some advice. Não estou te contando tudo aqui mas minha cabeça não anda muito boa. Um abraço!

sexta-feira, agosto 12, 2005

Nine Black Alps
Ten out of ten for a race already run
Bleeding the world cause you can't figure out what's wrong

So come back down from your daydream high
Lost for words when you sympathize
There's a million ways to believe you tried

Well I'm
Unsatisfied
Unsatisfied
Just sick and tired of all I've tried
Unsatisfied

So long since the one lit up your life
So long since you heard from the world outside

Turn yourself into part of the plan
Knock you low, find out where you stand
There's a million ways to believe you can

Well I'm
unsatisfied
Unsatisfied
Just sick and tired of all I've tried
Unsatisfied

Should look where you're going
Or where you're gonna hide
Should be feeling something
Of another life

Unsatisfied
Unsatisfied
Unsatisfied

So why'd you wanna hide every little lie?
Keeps it inside

terça-feira, agosto 02, 2005

Chère Lina,

27.07.2005 | Chegamos a Paris há três anos. Você não falava uma palavra de francês. Nem o seu sotaque tinha se firmado, já que vivera um ano em São Paulo e quase dois no Rio. A mudança não a assustou nem um pouco. Você tinha menos de três anos e gostou da informação de que Paris estava cheia de carrosséis.
Chegamos num domingo. Nosso primeiro passeio foi a Montmartre, onde sabíamos que havia um carrossel permanente. Nossa primeira providência prática foi ir à Samaritaine, no dia seguinte, comprar um carrinho-de-bebê. Lá aprendemos juntos como é carro-de-bebê em francês, poussette. Aproveitei e te comprei dois bonequinhos, um príncipe e uma princesa. Também viemos a aprender a tradução de “carrossel”, manège. Você andou em dezenas de carrosséis em Paris. O da Place d’Italie, o das Tuilleries, o do Hôtel de Ville, o do Jardin du Luxembourg e sobretudo o do Jardins des Plantes, com animais extintos, em frente à sua escola. Um euro, uma volta.
Suas aulas começaram na quinta-feira seguinte. Você era a única que não falava francês na classe de vinte-e-cinco crianças da Petite Section de la Maternelle da escola da rue Buffon. À noite, em casa, quando alguma coisa caiu no chão, você disse a sua primeira expressão em francês, que certamente ouvira na escola, naquele dia: Oh la la!
Escola pública, cujas aulas começavam às oito e meia da manhã e terminavam às quatro e meia da tarde. Você nunca se sentiu à margem nem se queixou de isolamento. Ao contrário. Sempre quis ir à escola. Eu ficava imaginando se, de supetão, me botassem numa classe com vinte-e-cinco búlgaros, qual seria a minha reação. Acho que não gostaria.
Aos poucos, você foi entendendo o que falavam, e se fazia compreender. Sua primeira professora, Noëlle, nos contou que sabia o que queria dizer “molhado” em português. Foi a primeira e única palavra em português que Noëlle aprendeu. Em contrapartida, rapidamente você começou a falar bonjour, merci, au revoir. Hoje, você brinca e sonha em francês. Corrige a minha pronúncia. Faz trocadilhos e jogos de palavras. Usa expressões e gírias. P’tit dèj em vez de petit déjeuner (café-da-manhã), cap no lugar de capable (capaz). Ficou com dois nomes, Lina e Liná. Os franceses pensam que você é francesa.
Jamais vi um processo de aprendizagem tão fluido, rápido e eficaz. Sim, sei que com a maioria das crianças acontece a mesma coisa. Ainda assim, me espanta não só a facilidade mas a alegria com que você adquiriu o seu segundo idioma. O seu temperamento, além da sua inteligência, talvez tenham a ver. Há também a curiosidade e o afeto de seus coleguinhas. De Esther, que, um pouco maior que você, te protegeu e ajudou nos primeiros tempos. E houve o empenho e a capacidade de suas maîtresses, Marie-Hélène, Violeine e Cécilia, além de Noëlle, e das diréctrices, madames Goirand e Anner.
3, rue de L’Essai. Nosso endereço. No Cinquième. Uma ruazinha de uns cem metros, começando no Boulevard Saint-Marcel e terminando na rue Poliveau. “Essai” porque numa rua paralela, a Geoffrey Saint-Hilaire, no tempo de Luiz XIV, havia um mercado de cavalos. Os compradores iam experimentá-los (faire l’essai) no terreno ao lado.
Digitávamos o código, 61A84, a porta fazia um cléc, destrancava, e entrávamos no saguão. Víamos, à direita, se não havia correspondência na nossa caixa de correio. Abríamos a outra porta interna, virávamos à esquerda e subíamos o lance de escadas até o primeiro andar. À direita, a porta vermelha-escuro do nosso apartamento, com seu capacho em forma de cachorro, que você chamava de petit chien e insistia para que não pisássemos no rosto dele.
Dentro, logo à direita, ficava o toilete. À esquerda, os cabides onde pendurávamos os seus casacos. Seguindo no corredor, à direita ficava a pequena cozinha, com a pia, o fogão, a máquina de lavar, a mesinha e o pequeno armário. Ali passei várias horas. Não tivemos empregada e uma das minhas funções domésticas era lavar louça. Logo fui coroado Roi de la Vaisselle.

Ao lado da cozinha ficava o seu quarto. Você dormia na cama da esquerda, sempre com o seu macaquinho de estimação. Ali, todas as noites, você ouviu histórias de princesas, de fadas, de feiticeiras, de heróis, de seres fantásticos. Cendrillon, La Belle au Bois Dormant, Achiles, Ulisses, La Belle et la Bête, Raiponce, Hélène, Athéne, Blanche Neige, Jason, Les Argonautes. Os irmãos Grimm, Perrault, Homero, mitologia, contos populares, folclore.

No fim do corredor ficava o banheiro, com a pia e a banheira. Ao lado esquerdo, o meu quarto-escritório. Na sala ao lado ficava a mesa de almoço, o sofá e a pequena televisão. Apartamento antigo, com lareira na sala e nos dois quartos. Na lareira da sala montamos o seu castelo de madeira, onde você botou todos os seus personagens. Ao príncipe e à princesa, acrescentamos o rei, a rainha, a bruxa, outra princesa, o cavaleiro, o cavalo. Você passava horas na frente da lareira com os bonecos, imitando vozes, inventando histórias.
As janelas da sala e do meu quarto davam para a rua, onde poucos carros passavam, apesar de, à esquerda, haver uma garagem. O seu quarto e a cozinha davam para o pátio interno. Descíamos lá para jogar o lixo na poubelle. Cumprimentávamos e trocávamos algumas palavras com os vizinhos: o velhinho meio surdo que sempre falava que ia esfriar; a moça do térreo, com um novo namorado a cada encontro; a senhora da porta em frente, que veio do Irã e trabalhava na Printemps do centro comercial da Place d’Italie; o casal de jovens que ficava em frente à sua janela; o menino que subia a escada de patins; o casal de gordões que morava em cima do nosso apartamento, e felizmente só marchava a passos pesados e apressados na hora em que acordávamos, sete e meia da manhã.
Você plantou uma muda de morangueiro no jardim do pátio. Durante duas primaveras nos regalamos com os teus moranguinhos.
A tua, a nossa vida, transcorriam entre o Sena, o Jardin des Plantes, a rue Mouffetard, a Grande Mesquita e a Place d’Italie. Dentro desses limites ficavam a casa, escola, a biblioteca, nossos bares e restaurantes, nossos cinemas e estações de metrô, nossas padarias e mercados, nossos amigos, a tua escola de música e a de balé, ambas da Prefeitura.

Nesses marcos, os nossos rituais. O café-da-manhã do sábado, no Baratin, no Poliveau ou no Le Sympathique, onde você pedia chocolate e pão com manteiga, e falava sem parar enquanto eu dava uma olhada no jornal. Eu logo desistia da leitura: nenhuma notícia valia os teus casos. O poulet de télé comprado no açougue nas manhãs de domingo, depois do cinema.
A barbearia, a mais antiga do bairro, na rue Daubenton, onde cortávamos o cabelo. Você, com o barbeiro baixinho e de cavanhaque. Eu, com o gordão bigodudo. Barbearia tradicional, de profissionais habilidosos no uso da navalha e das tesouras. Quantas vezes fomos lá? Dezenas.
O baile da rue Mouffetard, que logo virou “La Mouff”, onde dançamos, escutamos e cantamos velhas canções, acompanhadas pelo acordeon do senhor de boina e cabelos brancos. Compramos então um disco e não paramos de escutar e cantar “La mer”, “Au lycée Papillon”, “Un jour mon prince viendra”, “Le temps des cérises”, “Douce France”, “Lily Marlène”, “Papa n’a pas voulu”, “Je ne suis pas bien portant".
Não ficamos só no nosso bairro. Viramos Paris de cabeça para baixo. De metrô, ônibus e a pé. Em piqueniques, caminhadas, visitas. Acho que a lista dos teus passeios preferidos incluiria a catedral de Notre Dame, para ver os relevos atrás do altar, em madeira, contando cenas da vida de Jesus.
E o Bois de Vincennes, onde você foi dezenas de vezes, com a gente, com a escola e com a turma do Centre des Loisirs, onde você ficava nas quartas-feiras.
E o Museu d’Orsay, onde estão, no último andar, os quadros de Monet e Van Gogh.
E o Sena, entre as pontes de Austerlitz e Neuf, seja à bordo do Bateaubus ou andando pela margem esquerda.
E o Jardin du Luxembourg, onde você via o teatrinho do Guignol, andava no carrossel, passeava de pônei e voava na balança.
E o Opéra Garnier, onde vimos “Giselle”, “La Belle au Bois Dormant” e “Carmen”.
E a Place des Vosges, onde no verão da canicule você tomou banho peladinha na fonte.
E o Jardin des Tuilleries, também no verão, para ver Paris lá de cima, da roda-gigante, pular na cama-elástica e pescar patinhos de plástico.
E as piscinas, mais a Jean Taris que a Pontoise, cuja água era mais fria.
E o Train Bleu, onde comemoramos sempre o aniversário da mamãe, mais pelo ambiente do que propriamente pela comida.
E o Institut du Monde Arabe, onde você teve uma aula sobre os quadros de Matisse no Marrocos e copiou um deles.
Dias depois, aor irmos de ônibus para Saint-Germain, você nos contou como foi o atelier Matisse au Maroc. Contou com tantas minúcias e detalhes, com tal objetividade, que tive medo que você viesse a ser jornalista. Ainda bem que você disse que quer ser princesa, ou bailarina, ou poeta, ou ilustradora, ou padeira.
Esses lugares são muito íntimos, demasiadamente nossos, para serem também Paris.
***
Não ficamos só em Paris.
Fomos à Savóia, onde fizemos guerra de neve em Annecy e vimos a catedral rosa de Strasbourg.
Ao Luberon, com seus campos de lavanda, seus vales suaves, seus delicados vilarejos .
A Marselha, onde visitamos a ilha-prisão do Conde de Monte Cristo.
À Bretanha, onde choveu o tempo todo e comemos galettes e crêpes até enjoarmos.
Aos Alpes, onde contemplamos marmotas e picos gelados.
À Normandia, onde escureceu quase à meia-noite.
Ao Périgord, com suas grutas, castelos e pinturas pré-históricas.
À Córsega, onde tomamos banho de rio e o céu tinha infinitas estrelas.
***
Não ficamos só na França.
Fomos à Croácia, onde visitamos a Gruta Azul e andamos nas ruas de mármore de Dubrovnik.
Não levamos para lá a poussette. Era fogo te carregar no colo no calor do verão. Você andava direitinho, mas às vezes cansava. Te contei que o marechal Tito, um antigo presidente da Croácia, proibira os pais de levar as crianças no colo. Só os bebês eram autorizados. Assim que viam pais com crianças no colo, os guardas intervinham. Você acreditou. E passou a andar o tempo todo. Quando você não aguentava mais, te pegávamos no colo. Apreensiva, você vigiava. Assim que um policial aparecia, voltava para o chão. De retorno à França, inventei que Jacques Chirac tinha feito uma lei igual à do marechal Tito. Nunca mais precisamos da poussette, que foi dada à Jeanne, a irmãzinha do Rémi. Está com ela até hoje.
Fomos a Veneza, aos seus canais, às suas igrejas, à laguna, à Academia, a Rialto, à praça de San Marco, onde os pombos te atacaram.
Fomos à Islândia. Tomamos banho de piscina sob a neve. Nadamos na Lagoa Azul. Vimos as cachoeiras congeladas. Você riu à beça quando escorreguei e caí ao lado de um gêiser.
Em busca do frio, das estrelas e da neve, fomos também à Lapônia. Tombamos do trenó de huskies. Não conseguimos pescar nada no buraco de gelo. Vimos campos imaculados de neve, pacatas renas, um iglu que dava num labirinto, um lago congelado, florestas de pinheiros imóveis, a pequena aurora boreal, o rubro amanhecer – et tous ces moments se perdront, dans l’oubli, comme les larmes dans la pluie..
Paris era o nosso ponto de retorno, o teu centro seguro, a tua vida verdadeira. A bela Paris. A cidade mais linda do mundo. A cidade que é obra humana. A cidade onde a beleza foi conquistada, construída e preservada. A cidade das grandes vistas. Dos monumentos gloriosos. A cidade cheia de história, e tão viva, tão dinâmica.
Em Paris, ma petite, você aprendeu o lento revolver das estações. Cada uma delas a mostrar uma cidade diferente. As tuas preferidas eram a primavera, com sua flores e folhas verdejantes, com o casaco finalmente deixado em casa, junto com o gorro, as luvas, a meia-calça de lã, o cachecol; e o inverno, com seus dias curtos, o vento, o cinza, céu baixo, o frio. Mas você amava também o outono, o demorado cair das folhas do Jardins des Plantes, os corvos e pássaros desaparecendo.
Em Paris, você aprendeu a arte da amizade. Joseph, Anton, Emma, Naama, Louisa, Timo, Esther, Jasmina, Pierre, Marie, Chloé, Nissim. No fim, até da Andréa você gostou. Queria convidá-la para ir em casa. A Andréa que você achava uma bruxa, e bolou mil planos para se livrar dela. Com eles você brincou, jogou, conversou, discutiu. Todos eles te amaram e a todos você amou.
Em Paris você teve o seu primeiro amor.
Rémi. Rémi Turquier. Um menininho francês: magricelo, branquinho, de óculos, sempre despenteado, tímido, inteligente. Vocês passaram três anos na mesma classe. Na Petite Section, vocês tinham direito a uma sesta depois do almoço. Ficavam em beliches vizinhos. Começaram a se contar histórias. Depois, filmes imaginários. Depois, inventaram máquinas fantásticas. Ficaram amigos. Os melhores amigos. Namorados, amoureux. Não namorados de brincadeirinha, por pressão do grupo. Vocês eram muito pequenos, tinham três anos, para se dedicarem a essas bobagens.
Na Moyenne e na Grande Sections, continuaram juntos. Lado a lado na classe, no recreio, na volta da escola, em passeios, em visitas à casa de um e outro, em festas de aniversário, na viagem à colônia de férias. As professoras, os colegas, os pais dos colegas, nossos amigos e conhecidos, todos diziam: eles formam um par, um casal, são namorados. Vocês se viam como namorados. Monsieur Paul, nosso marchand aux journaux, ouviu você falar do Rémi e perguntou se ele era seu melhor amigo. “Mais non, c’est mon amoureux!”, você respondeu. De mãos dadas, lá iam vocês, na nossa frente, na rua, andando e falando sem parar: patati e patata e patati e patata.
Quando você via algo interessante, ou um bom filme, ou ouvia uma história legal, a sua primeira reação era exclamar: “Preciso trazer o Rémi aqui!”, “É preciso, absolutamente, convidar o Rémi para ver esse filme!”, “Preciso contar isso ao Rémi!”
Nas viagens, você procurava folhas, flores e gravetos para levar ao Rémi. Na Islândia, pegou uma pedra em forma de celular e nos avisou: “estou telefonando para o Rémi”. Você deu um avião, um jogo de memória, desenhos e pinturas para ele. Ele te deu um saco de avelãs que colheu na casa dos avós, um anel com um golfinho e várias fivelinhas de cabelo. Vocês se amavam, ma chérie.
Por isso, tiveram os seus percalços. Passaram alguns dias cabisbaixos. Você nos disse que o Rémi não te amava mais. E o Rémi contou ao avô que a Liná não o amava mais. Depois, voltaram à alegria de sempre. Ao te esclarecer o sentido da palavra jalousie, ciúme, você me disse: o Rémi teve duas crises de ciúme. Numa, você estava de mãos dadas com o Joseph. O Rémi se encolerizou, berrou, tentou bater no Joseph e em você. No dia seguinte, voltaram à alegria de sempre. Noutra vez, você chorou porque o Rémi estava de mãos dadas com a Emma. Horas depois, voltaram à alegria de sempre.
Todos os teus problemas em Paris – os joelhos esfolados, os tombos, os resfriados, as briguinhas com os colegas, o prato de legumes, a irritação proveniente do cansaço, a teimosia – todos foram resolvidos, na média, em dez minutos.
Como separar Liná e Rémi, duas crianças apaixonadas de cinco anos? Como se separar de Paris? Ficamos preocupados, nós, os pais de Rémi, Natalie e Serge, os avós dele, os nossos amigos. Quando vinha o assunto da volta ao Brasil, você dizia que queria ficar em Paris. E falava de Rémi. Uma vez, brincando em casa, você disse a ele, muito séria: Tu va me manquer, Rémi, tu va beaucoup me manquer.
Há um mês, vocês passaram um sábado juntos. Foram à piscina Jean Taris com a Flavia. Se divertiram até ficar com os lábios roxos de frio. Fui encontrar vocês na sorveteria em frente à igreja de Saint-Médard. Você me disse, orgulhosa: “Veja como ele está penteadinho! Fui eu que o penteei”. Em casa, brincaram até tarde. Cada um na sua cama, ouvimos o ronronar, patati, patata, até que exaustos, caíram no sono. No dia seguinte, fomos levar Rémi até a casa dele, na rue de la Clef. Vocês ficaram tristes. Já na porta, na despedida, você começou a chorar, e foi chorando pela rua. Depois, Natalie contou que Rémi passou o resto do dia silencioso e arredio.
Cada um reage de uma maneira à cerimônia do adeus. Frédéric, o garçon do Baratin (que uma manhã, quando cheguei atrasado e com a cara amarfanhada para o café, me deu dois comprimidos para ressaca), disse: merde! Monsieur Paul perguntou, desolado, à mulher: “Mas como eu não vou ver Liná crescer?” Eles te deram três bonequinhas e uma revista de presente. Soria, a melhor amiga de mamãe, evitou uma despedida formal. Receio de chorar, acho. Monsieur Bonbon, do Austerlitz, te deu um saco de balas e pirulitos. Monsieur André, do Poliveau, parou de me cobrar o café e me chamou para um copo de vinho. Serge e Natalie nos convidaram para um piquenique. Anton e seus pais, Sophie, Abdel, Louisa e Timo também foram, além de Jeanne e Rémi.
Claudine e Hubert nos chamaram para um almoço de domingo, num restaurante chinês do Treizième. Keiko e Patrice também foram. As quatro crianças estavam lá. Era a mesma turma com a qual passávamos o domingo de Páscoa, numa casa de subúrbio à beira do Sena. Chegamos debaixo de tempestade. Patrice fez a sua hilariante imitação de Chirac. Na saída, estava sol, passeamos pela Butte-aux-Cailles. Keiko nos deu uma gravura caligráfica japonesa.
Às vezes, no entanto, eu te pegava desanimada. Ou pensativa. Às vezes, você me abraçava muito, e forte. Às vezes eu sentia que você estava triste, mesmo que não soubesse o que era a tristeza.
Te ensinei a Valsa da Despedida. Passamos a cantá-la em francês:

Faut-il nous quitter sans espoir
Sans espoir de retour?
Faut-il nous quitter sans espoir
De nous revoir un jour?

Ce n'est qu'un au revoir, mes frères,
Ce n'est qu'un au revoir!
Oui, nous nous rev’rons, mes frères,
Ce n'est qu'un au revoir!
E em português:
Adeus, amor, eu vou partir
Ouço ao longe um clarim
Mas onde eu for irei sentir
Os teus passos junto a mim
Estando em luta, estando a sós
Ouvirei a tua voz
A luz que brilha em teu olhar
A certeza me deu
De que ninguém pode afastar
O meu coração do teu
No céu, na terra, onde for
Viverá o nosso amor
De vez em quando, eu trocava o mes frères, e o “amor” do primeiro verso, por “Paris” e “Rémi”. Eu queria te ajudar, queria nos consolar. Você sorria. O seu sorriso maroto.
Vimos Rémi pela última vez nas Arènes de Lutèces. Vocês brincaram. Retomaram um caminho secreto, que dava no “ponto de vista” – um olho com um ponto no meio, que Rémi desenhara dias antes numa pedra. O tempo passou. Precisávamos ir embora. Mas você queria mais um jogo, mais uma brincadeira, mais alguns minutos, uns poucos instantes, um finzinho. Mas também queria, eu sei, ficar com Rémi. Para sempre. Você saiu chorando do parque. Estava sentida. Passaram os dez minutos e você voltou a sorrir. Estava novamente animada quando comeu um hamburguer na rue des Écoles.
Eu, não. Eu estava com o coração engruvinhado. Eu tinha um monstro na garganta. Eu estava moído pelo remorso. Eu pensava no tempo, esse bicho que anda e anda, pensava na máquina do mundo. Eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, as mãos pensas.
***
Escrevo essa carta, minha filha, que um dia você lerá, para dizer que, contra toda evidência, acredito que Paris continuará contigo. O esquecimento, bem sei, é inexorável. Mas a memória também. Uma certa Paris continuará a viver dentro de você. Uma imagem da cidade, ainda que fugaz e esmaecida, restará na tua lembrança. A figura fugidia do amor e da felicidade.
Bisou,
Papa