quinta-feira, outubro 20, 2005

Crash - no Limite

Por Contardo Calligaris
Seis anos atrás, um filme prodigioso, "Magnólia", de Paul Thomas Anderson, produziu em mim um efeito parecido. Quem assistiu a "Magnólia" deve se lembrar do momento em que todos os personagens, separada e simultaneamente (cada um em seu lugar trágico), cantam uma mesma música, que é uma espécie de hino ao caráter inelutável da vida: "...and it is not going to stop, till you wisen up..." (e não vai parar até que você crie juízo). É um exemplo perfeito da "alegria" melancólica que é fruto da aceitação do mundo como ele é. Pois bem, está em pré-estréia em São Paulo "Crash - No Limite". É o primeiro filme de Paul Haggis, que foi roteirista de "Menina de Ouro". Quando o filme saiu nos Estados Unidos, no ano passado, a crítica (elogiosa) salientou a apresentação brutal da difícil convivência de etnias diferentes na sociedade americana. De fato, o filme é um soco no estômago de quem acredita nos efeitos lenitivos do politicamente correto: latinos, negros, brancos e orientais se agridem e se insultam pelas ruas de Los Angeles. Parece fracassar a esperança (americana e, em geral, iluminista) de um caldeirão em que as diferenças étnicas, culturais e sociais seriam quase irrelevantes e prevaleceria o sentimento de pertencermos todos à mesma espécie. Mas dizer que o filme de Haggis mostra a morte do sonho moderno da convivência dos diferentes seria, no mínimo, ingênuo. Ao contrário, o milagre de "Crash" (choque ou batida) é que, no filme, a feiúra e a loucura do cotidiano, assim como o próprio choque das diferenças, nos aparecem como provas de nossa humanidade comum. Pensando bem, aliás, a única versão possível do sonho moderno talvez seja esta: não a paz e o respeito recíproco, mas a descoberta de um lote de misérias e incertezas que enxergamos nos outros porque, no fundo, são sempre parecidas com as da gente. O sonho moderno não se realiza numa fanfarra de nobres idéias compartilhadas, mas na ternura de nosso olhar diante da imperfeição do mundo, ou seja, de todos nós. Um policial abusa de sua autoridade para enfiar a mão entre as pernas de uma mulher na hora de revistá-la; o mesmo policial pode arriscar a vida para salvar a dita mulher do fogo. Um jovem bem intencionado é horrorizado pelo preconceito racial, mas (reflexo de defesa) é o primeiro a atirar num negro que enfia a mão no bolso. Um assaltante de carros pode atropelar um chinês mas pode também soltar um carregamento inteiro de imigrantes ilegais fadados ao trabalho escravo. A arrogância de uma dama de classe "A" acaba quando ela cai na escada de casa e o único abraço que ela encontra é o de sua empregada. A arrogância de um guardião da lei acaba quando ele assiste o pai doente no meio da noite. E por aí vai. Isto é, lá vamos nós: meio heróis, meio pilantras, capazes do pior e do melhor. Assim é a vida, no tom certo. Não perca "Crash - No Limite" sob nenhum pretexto.

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