Por Dulce Quental
Provas de amor são fundamentais. Carinhos diários, declarações explícitas. São como água, luz e sono. Precisamos de confirmação: somos amados ou não? Somos passíveis de sermos amados ou nos fecharemos como ostras incrustadas em pérolas perdidas no fundo do mar? Nem o escafandrista virá nos salvar quando a civilização submergir - como o Pinóquio do Inteligência Artificial, de Kubrick e Spielberg - ficaremos eternamente congelados à espera da estrela azul que nos dirá, o que precisaremos sempre ouvir: somos desejados e amados pela grande mãe terra.
E se isso não acontecer e provas de amor não chegarem? A cada dia minguaremos, cada vez mais tristes, até o dia em que, trancados em nós mesmos, adoeceremos, num oceano de incertezas sem fim. Pois assim funciona o sabotador. Pronto para atacar à sombra da primeira dúvida. Aquela idéia para uma nova canção? Desprezamos. Não é boa, o suficiente. O amigo que ligou pra conversar? Sob as lentes do nosso novo estado de humor, não é capaz de compreender o que estamos passando. Pois nos sentimos sozinhos, isolados e desimportantes à luz do mundo.
Na verdade o que aconteceu é que fomos feridos. A fonte vital que alimenta o nosso entusiasmo foi atingida. Enfraquecidos na nossa autoconfiança acreditamos no ouro dos tolos. Estamos à mercê do mundo e do que ele diz de nós. No momento não há nada a fazer. Só nos resta lamber as feridas e dar tempo ao tempo, pois um silêncio entre nós e o mundo há de se perpetuar por algumas semanas até que descubramos como nos reerguer de novo.
Mas como isso acontece? Por que não conseguimos nos proteger da agressão/omissão do mundo e das pessoas? Será que já não vivemos tempo suficiente para aprendermos o fundamental? Nem sempre as coisas saem do jeito que esperamos. Mesmo assim aprendemos a seguir em frente. Mas por que nem sempre funciona ? Por que às vezes nada funciona?
Dizem que certas doenças demoram anos pra se instalar dentro de nós. Elas trabalham em silencio, nas lacunas que nós não preenchemos. Como sujeira debaixo de um tapete que não limpamos. Até que um dia, como o monstro do lago Ness, atacam, nos surpreendendo com seu golpe mortal.
Tendo a achar que sofremos a vida inteira dos mesmos males. Nossos maiores medos estão sempre voltando a nos aterrorizar. Velhos medos com novas máscaras. Cabe a nós criarmos novas porções de cura, cada vez mais mágicas e rápidas a fim de desmascarar esse nosso vilão de estimação.
Precisamos aprender a gerar amor quando ele não vem de fora. Como artistas, somos processadores de vida, geradores de mudanças, agentes de transformação, dentro do mundo real, mas principalmente do mundo invisível. Somos magos, alquimistas, surfistas de idéias e sinais. Com nossas tintas e tijolos de papel erguemos catedrais onde antes só havia vazio. Até ficarem prontas, somente nós enxergamos, e talvez alguns aliados e amigos, que acreditam também que sonhos podem ser reais. Mas enquanto isso, somos os seres mais solitários do mundo.
Meio Dom Quixotes e Sanchos Panças, trabalhamos com nossos moinhos de vento, contando formigas e fuxicando caixinhas de recordações. Como crianças na Terra do Nunca reaprendemos a nos desprender e a brincar. Pois esse é o nosso oficio: guardar a inocência do mundo. Mas como curar uma ferida profunda? Parece que quanto mais olhamos pra ela, maior fica. Descobri muito recentemente que dar amor, atenção e carinho para alguém próximo, ou mesmo desconhecido, é um meio de cura muito eficaz. Talvez agora eu possa entender a vocação de certas pessoas que passam a vida em seus consultórios escutando a dor alheia. Só quem foi ferido profundamente pode curar alguém. A compaixão é um sentimento que gera um bem estar para todos os envolvidos.
Ajudar alguém é ajudar a si próprio através do outro. Pois não somos tão diferentes assim. Estamos todos sob o mesmo abandono universal, sob o mesmo fogo cruzado, sob a mira da mesma bala perdida ou do mesmo homem-bomba. Podemos explodir a qualquer momento. Podemos ser assaltados, roubados, traídos, excluídos e porque não também amados. Mas para tanto e tal precisamos correr riscos. E correr riscos muitas vezes significa estar vulnerável, inclusive para experiências ruins. Pois não há como estar aberto para a vida sem que não sejamos atingidos por ela.
Ser atingido muitas vezes é ser mal interpretado. Ser subestimado. Ser julgado e condenado. Mas e daí. Esse é o preço de quem ama a liberdade. Nietzche dizia que "quem ama o abismo precisa ter asas". O nosso problema é que saltamos quase sempre sem rede de proteção. "Salte e a rede aparecerá", "a providência age com quem tem coragem", dizia Goethe, "pois a coragem possui algo de genialidade intrínseca".
Nem sempre. Às vezes um charuto é apenas um charuto e nada mais. Não há interpretações. Nem compensações. Só conseqüência. Fatos e fins. E assim quebramos a cara, perdemos as apostas e ganhamos mechas brancas de maturidade.
"Naquela manhã Suzan não viu a cara do sol. Se tivesse saído para dar um dos seus passeios matinais talvez tivesse descoberto uma mina de ouro há poucos metros do banco onde costuma se sentar. Sir Eduard e seu cão passeavam...". E assim passou a vida de Suzan, que nunca se casou, nem conheceu o "amor maior".
Fincar bandeiras solitárias em áreas de risco. Um trabalho de resistência humana. Ser capaz de morrer por uma idéia. Ser capaz de abrir mão de confortos burgueses. Aprender a viver com pouco. Somente o essencial. Precisamos de uma nova ideologia para o caos das relações nos dias de hoje.
"Se tudo caiu, que tudo caia", me lembro bem dessa letra do Antonio Cícero, cantada pela Marina. Está na hora de juntar os caquinhos. Restos de esperança. Pitadas de boa vontade. Muito descanso e carinho de quem vale de verdade. As palavras com sua alegria voltarão quando você menos esperar. Como um dia de sol depois da chuva. Você vai acordar e dizer: "Foi só uma gripe, hoje estou me sentindo ótima!"
Dulce Quental é cantora e letrista.
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