sábado, abril 30, 2005

Literatura de paixão, sombras e luz
Marcelo Moutinho
Caio 3D — O essencial da década de 1970, de Caio Fernando Abreu.
Editora Agir, 360 páginas. R$ 49,90
receber a folha com o resultado do exame a que se submetera, e onde em letras geladas constava a palavra “positivo”, Caio Fernando Abreu talvez não imaginasse que ali estava, mais do que o prenúncio de morte, o início de uma completa reviravolta em seu modo de ver o mundo — e de escrevê-lo. Diante da perspectiva do confronto iminente com o fim, o sol negro que até então semeara melancolia em sua obra se tornaria claridade pura, intensa, regeneradora. Tal mudança, flagrante nas crônicas a que se dedicou nos últimos anos e nas cartas remetidas a amigos e parentes, transpareceria de forma ainda mais concreta no olhar que passou a legar aos escritos passados, nos quais chegou a promover alterações. A mais visível delas, decerto, a tênue (mas significativa) adição de um hífen no título de “Inventário do irremediável”, seu primeiro livro de contos. Na revisão feita 25 anos depois do lançamento original, de 1970, Caio transformou a fatalidade daquele “irremediável” num “ir-remediável” — que pode ser reparado. Esta segunda grafia foi mantida pela Editora Agir na coletânea “Caio 3D — O essencial da década de 1970”, que republica o trabalho de estréia do autor ao lado de contos dispersos e inéditos, poemas, correspondências e depoimentos, numa seleta que se centra sobre sua produção intelectual entre 1970 e 1980. O livro é o ponto de partida de uma série que contará ainda com volumes sobre os anos 80 e 90. Além disso, marca o início do relançamento, pela própria Agir, da obra completa de Caio, numa bem-vinda iniciativa que possibilitará ao leitor acompanhar, livro a livro, o desenrolar da carreira daquele a quem Lygia Fagundes Telles chamava de “escritor da paixão”. De títulos célebres, como “Onde andará Dulce Veiga?” e “Morangos mofados”, a trabalhos menos conhecidos, casos de “Limite branco” e do compêndio de crônicas “Pequenas epifanias”. Livro também investiga a solidão O primeiro volume da coleção “Caio 3D” evidencia a influência ainda excessiva de Clarice Lispector, mas já contempla questões que se firmariam como grandes obsessões do autor. Estão presentes o flerte com o fantástico, que alcançaria graus máximos em contos como “Mergulho I”, de “Pedras de Calcutá”, e as recorrentes referências à astrologia, que seriam levadas ao paroxismo em “Triângulo das águas”, cujas três novelas relacionam-se com os arquétipos dos signos de peixes, escorpião e câncer. O livro investiga também a solidão, que na literatura de Caio aparece menos como uma condição permanente, e mais como uma espécie de hiato entre dois amores — o que se foi e o que virá. Tal traço é explicitado, por exemplo, no conto “Itinerário”: “Por entre essa infinidade de formas (...); por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagens incompletas como retratos rasgados; por entre essa idéia à qual faltam braços, pernas, cabeças (...); eu busco. Sem encontrar”. Há ainda uma ânsia quase desesperada por paixão, “com a consciência dolorosa de que ela importa mais do que seu objeto”, como anota Maria Adelaide Amaral no prefácio, em observação que pode ser sintetizada numa frase do belo “Anotações de um amor urbano”. O narrador, abalado pelo rompimento, assevera: “Amanhã não desisto: e te procuro em outro corpo, juro que um dia te encontro.”
Poema 'Alento'
“QUANDO MAIS NADA HOUVER, eu me erguerei cantando, saudando a vida com meu corpo de cavalo jovem. E numa louca corrida entregarei meu ser ao ser do Tempo e a minha voz à doce voz do vento. Despojado do que já não há solto no vazio do que ainda não veio, minha boca cantará cantos de alívio pelo que se foi, cantos de espera pelo que há de vir.”
Trecho do conto 'Aniversário':
“HAVIA ESPERADO DURANTE TODO O DIA. O QUÊ? nem ele próprio saberia dizer. Acordara já com a fatalidade da espera colocando um brilho triste nos olhos. E o projetara sobre a mãe, primeira pessoa a abraçá-lo, que recuou um pouco ofendida. O mesmo recuo sentira estender-se às outras pessoas, à medida em que o abraçavam e felicitavam. Examinara-se ansioso ao espelho, tentando descobrir se o ano a mais também lhe colocara uma ferocidade a mais ou um novo espanto no rosto. Mas não. Nada. Lá estavam as mesmas feições um pouco vagas, o ar exato de quem espera alguma coisa. E contudo, nesse dia, ele esperava mesmo. A espera abstrata cedera lugar à outra — concreta. Ajeitara o rosto da melhor maneira possível, como se o sentimento novo (e no entanto tão antigo) fosse algo a esconder. Porque ele não queria surpreender nem chocar nem ferir. Pertencia àquela estranha espécie de pessoas que flutuam pelo mundo, sutis, evitando esbarrar em qualquer coisa. Não se sabia se procedia assim por simples delicadeza ou para defender-se. O fato é que era assim. E, portanto, desagradava-lhe aquele jeito de espera gritando alto no corpo inteiro.”
Um clima soturno paira sobre “Caio 3D”, em especial sobre seus personagens, sempre às voltas com o entrave do não-pertencimento, da inadequação. “Eu tinha qualquer coisa como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar, quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro”, confessa, lamentoso, o protagonista de “O mar mais longe que eu vejo”.
Frente a frente com a morte, que o levaria em 1996, aos 48 anos, decidiu plantar rosas e viver cada dia “arrancando das coisas, com as unhas, uma modesta alegria”. Talvez já tivesse então desvendado, através da literatura mas sobretudo da vida, o segredo da árvore mágica que, apesar de fincada num terreno taciturno e sombrio, encanta o protagonista do conto “Caixinha de música”: extrair do emaranhado de dor, angústia fria e solidão escura a beleza a ser lançada para fora.

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