segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas. Tradução de Maria Carolina de Araujo e Josely Vianna Baptista. Cosacnaify, 188 páginas. R$ 39
Para que serve a literatura? Por que escrever? Muitos escritores tiram, dessa dúvida, a energia de que necessitam para se dedicar a seus livros. “Eu escrevo para saber por que eu escrevo”, sintetizou, certa vez, Fernando Sabino. Mas para muitos outros, a pergunta, em vez de motor, se transforma em obstáculo. Em vez de estimulá-los, os leva justamente na direção do silêncio e do vazio.
“Bartleby e companhia” é um livro que fica a meio caminho entre a ficção, o ensaio, a reflexão pessoal. Com ele, o escritor catalão nos mostra, mais uma vez, que a literatura é tão viva e móvel quanto um bicho, que suas fronteiras são líquidas e instáveis, que sua identidade — exatamente como a nossa, a humana — é pura irregularidade e simples ficção.
Ao longo do livro, desfilam escritores e personagens que se deixaram impregnar pelo que Vila-Matas chama de “do Não”. O próprio “Bartleby e companhia” — um conjunto de notas dispersas para um livro que nunca foi escrito — é, na verdade, uma narrativa que se ergue sobre uma negação. Difuso e pouco visível, o narrador de Vila-Matas é, ele também, uma vítima da doença do Não. Ainda assim, com suas notas ao romance inexistente, ele nos mostra que “escrever que não se pode escrever também é escrever.
As desculpas que justificam essa imobilidade são variadas. Ele nos recorda, por exemplo, a história de Paranóico Pérez, personagem do jovem escritor Antonio de la Mota Ruiz, que nunca pôde escrever um livro porque, sempre que tinha uma idéia, o português José Saramago a escrevia antes dele. Ou do francês Gustave Flaubert, que passava longos períodos de asfixia literária, amparando-se na desculpa de que não escrevia porque estava à espera da inspiração — ou seja, não escrevia para poder escrever.
Através de seu Monsieur Teste, o francês Paul Valéry dizia que “quanto mais se escreve, menos se pensa”, e nesse caso, o não escrever se torna uma justificativa — um fundamento — do pensamento e uma maneira secreta de filosofar. Os americanos até hoje se intrigam com o silêncio enfezado de Salinger; assim como nós, brasileiros, nos atormentamos com a mudez de Raduan Nassar, um exemplar escritor do Não que escapou a Vila-Matas.
Nas fronteiras do sonho literário, não escrever se converte, desse modo, numa manifestação extrema da literatura, como a prostração que se sucede ao orgasmo. Será ela o fim, ou o apogeu do prazer? Transposta para a literatura, e imitando os sábios orientais, a mesma pergunta ficaria assim: não escrever é abdicar da literatura ou, ao contrário, é esgotá-la?
Existem aqueles, como o francês Georges Simenon — que em 61 anos de atividade literária publicou 190 romances sob pseudônimo, 193 assinados com seu nome, 25 obras autobiográficas e mais de mil contos — que, ao contrário, são verdadeiros anti-Bartleby. Em 1929, ele chegou a escrever 41 romances!
Ao contrário de Simenon, os Bartleby de Vila-Matas, tomados por uma pulsão negativa que os leva sempre a desconfiar das palavras, ou a topar com sua insuficiência, se deixam vencer pelo mal do Não. São sujeitos que, na verdade, aspiram às delícias da paralisia e, como discípulos de Oscar Wilde, poderiam dizer que seu ideal é “não fazer absolutamente nada, que é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual”.
Optar pelo Não traz, ao menos, uma vantagem: se não escrevem, como esses escritores podem ser criticados? Com essa opção pelo silêncio, conservam intactas suas reputações e sua paz. Nesse caso, o “desfalecimento da palavra e naufrágio do Eu”, como Vila-Matas descreve, se torna, no fim das contas, uma estratégia de salvação. Não fazer é sempre menos perigoso que fazer.
Autor de esplêndidos aforismos, o francês Joseph Joubert, que foi secretário de Chateaubriand, lutava, sem sucesso, para escrever um livro. Cobrado por seu patrão, que muito o admirava, ele assim sintetizou seu impasse: “Ainda não posso escrevê-lo, ainda não encontrei a fonte que procuro. E se encontro essa fonte, terei mais motivos ainda para não escrever”. Joubert, como tantos escritores do Não, se deixava imobilizar pela insuficiência das palavras. Ele faz parte de uma longa galeria de escritores massacrados por seus próprios ideais que, não suportando a fragilidade das ações humanas, preferem delas abdicar, e assim se sentem mais próximos da perfeição.
O que não deixa de ser uma maneira de dar uma solução à questão literária. Escritores, provavelmente, habitados pelos versos do poeta Dylan Thomas: “Alguma certeza deve existir,/ se não de amar, ao menos de não amar”.
Por JOSÉ CASTELLO, jornalista e escritor.

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